Chico Buarque no Globo | visto pelo Luciano Martins Costa no Observatorio

Todas do Luciano Martins Costa publicadas no Blue Bus

Um artigo do compositor Chico Buarque publicado pelo Globo na ediçao de hoje, insere algumas ponderaçoes interessantes em torno do aquecido debate na mídia sobre a liberdade de expressao. Essencialmente, o ídolo da música popular se queixa de erros cometidos por biógrafos que usam a imprensa como base de pesquisa primária.

Como se sabe, há mais de 20 anos os jornais e revistas vêm deixando de ser considerados fontes confiáveis para pesquisadores sérios, exceto quando o objeto da pesquisa é a própria imprensa. Chico Buarque pondera que, ao colher informaçoes na imprensa, sem confirmar sua veracidade e, em alguns casos, sem fazer uma criteriosa ponderaçao sobre o contexto em que tal informaçao foi publicada, alguns autores dao seguimento a erros ou malversaçoes da mídia, acabando por atingir a honra ou a reputaçao do biografado.

O compositor se refere especificamente a um livro intitulado Eu nao sou cachorro, nao, no qual o autor afirma que ele teria acusado Caetano Veloso e Gilberto Gil, quando estavam exilados em Londres, de haverem denegrido a imagem do Brasil no exterior. Acontece que essa era uma informaçao falsa, inventada por um colunista do extinto jornal Última Hora do Rio, em 1971, que na época funcionava como uma espécie de porta-voz dos setores mais radicais da ditadura militar. O autor do livro simplesmente copiou a nota publicada numa coluna do jornal, que havia inventado a tal entrevista de Chico Buarque, em pleno governo do general Emilio Médici.

Chico observa que jamais teria dado uma entrevista àquela publicaçao, sendo ele mesmo, na época, perseguido pela ditadura e boicotado oficialmente pela TV Globo. De fato esse episódio mostra a negligência do autor ao dar crédito a fonte tao desqualificada. Daí essa mágoa toda.

Na mesma página do Globo pode-se ler outro artigo – do jornalista Ernesto Rodrigues, biógrafo de Ayrton Senna e Joao Havelange, que critica os integrantes do movimento Procure Saber, iniciadores da polêmica sobre o direito dos biografados. Rodrigues vai por outro viés, abordando o direito à privacidade de pessoas cujo sucesso depende exatamente da exposiçao pública, e questionando algumas alegaçoes em torno de direitos financeiros do biografado e descendentes sobre eventuais ganhos do autor da biografia.

O debate enveredou por labirintos tao obscuros que nao se pode mais encontrar a ponta da meada. Em parte porque alguns dos opositores à liberdade de criaçao dos biógrafos sao os compositores e cantores Gilberto Gil e Caetano Veloso, cujas vidas pessoais sempre foram deliberadamente expostas por eles mesmos como estratégia de relacionamento com o público.

Além disso, o movimento Procure Saber tem à frente a empresária e produtora Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano e apontada publicamente como personagem mais versada em finanças que em arte. Lavigne lidera uma campanha contra a comercializaçao de biografias nao autorizadas, o que, na prática, significa eliminar a biografia da relaçao de gêneros literários praticados no Brasil.

Sensatamente, biógrafos e outros autores e jornalistas ponderam que uma biografia autorizada nao passaria de um press-release em formato de livro, e que para tal o biografado deveria contratar uma assessoria de relaçoes públicas. O artigo de Chico Buarque encaminha a discussao para outra questao, bem mais complexa: o equilíbrio entre liberdade de expressao e responsabilidade, o que envolve diretamente a imprensa no imbroglio.

O gênero biografia nunca foi muito popular no Brasil, mas vem ganhando terreno com as transformaçoes da indústria cultural. O culto às celebridades estimula nao apenas as produçoes de filmes e vídeos sobre pessoas famosas, mas acaba chegando ao mercado editorial. Até pouco mais de duas décadas, esse gênero se limitava a meia dúzia de especialistas com carreiras consolidadas como biógrafos, entre eles Fernando Morais, Moacir Werneck de Castro, Ruy Castro e Francisco de Assis Ângelo.

No meio da barafunda em que se transformou o debate, que alcançou elevada temperatura nas redes sociais, cabe aqui ao observador pontuar o que concerne à imprensa nesse litígio – Nao é breve o que se pode ponderar, além do que disse Chico Buarque em seu artigo, mas o essencial é apenas isto: todo pesquisador que se dispoe a construir biografias, fundamentar estudos ou produzir historiografia com base nos arquivos de jornais e revistas brasileiros, corre grandes riscos.

Leia-se, por exemplo, o que disse a mídia sobre o ex-ministro Luiz Gushiken, recentemente falecido: uma biografia dele baseada na imprensa resultaria no emporcalhamento de sua memória – no entanto, ele foi inocentado de tudo que em vida lhe foi atribuído pelos jornalistas.

Que tal uma lei que garanta a liberdade dos autores e ao mesmo tempo defina as responsabilidades de todos, inclusive e principalmente das fontes primárias?

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