O Pica-Pau, a Xuxa e o retardado – entre o cochicho e o berro | Jayme Serva

No último sábado, o diretor do TV Xuxa, (sábados, 14:45, TV Globo), Mário Meirelles, postou no Twitter a pérola – “Atençao aos retardados que estao assistindo Pica-Pau. Começou TV Xuxa”. É difícil saber qual era o humor de Meirelles ao escrever a micromensagem. Poderia ser leve, chamando de “retardados” os amigos, como se faz num churrasco, numa pelada ou num jogo de truco, prenúncio de uma cerveja em seguida. Poderia ser algo raivoso, ressentido pela ingratidao dos que preferiram, no lugar da imensa originalidade que ele vinha a oferecer com Xuxa, a eterna reprise do Pica-Pau (quem nao se lembra do memorável combate entre o bichinho hiperativo e os milhares de pequenos ETs voadores, vencido por ele com a ajuda de rolos de fita durex?). Poderia ainda ser uma tentativa de açao social consequente, afinal ele soltou em seguida: “Começou ‘TV Xuxa’ sua única esperança de sair dessa lavagem cerebral”.

O fato é que o Twitter é escrito, nao falado ou filmado. Dá margem a todo tipo de leitura. Xuxistas lerao um Meirelles em luta. Picapauístas, como eu, enxergarao um afrontador, quase um herege. Já os amigos de Meirelles poderao rir, certamente conhecem melhor seu humor, seus limites, suas sutilezas. Jamais saberemos quais serao as reaçoes ou, antes delas, as leituras que serao feitas em cada tweet. A única coisa que se sabe é que o que era tweet virou shout, o que era pio virou berro, o que era entre amigos virou entre todos. Efeito claro da primeira geraçao adulta inteiramente “socialnetted”, que ainda une a inteira familiaridade com o meio a uma total falta de normas básicas de boa convivência.

Nas redes sociais, proclamamos independências, ofendemos amigos, desafiamos desconhecidos, julgamos e condenamos malconhecidos – e até chamamos o coitado que nao nos assiste de retardado. É assim. Dois anos atrás, chamei um até entao amigo de ‘limítrofe’, numa dura discussao no Facebook. Independente de ter ele todas as características que justificassem a designaçao, era um insulto, que jamais teria sido feita pessoalmente, por telefone ou em qualquer conversa nao-mediada. Só a combinaçao perigosíssima entre a autoconfiança do teclado e o narcisismo da tela permite que se digam coisas inadequadas com tanta liberalidade.

Mário Meirelles provavelmente vai ter mais problemas do que eu. Ele é emblemático deste momento, em que a euforia da disponibilidade leva a uma irresistível volúpia de exprimir. Como nao há ainda o melhor controle do tom, tudo carece da prudente distinçao entre o que é cochicho e o que é berro.

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